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MARCOS BRAGATTO (RJ): ERIC CLAPTON CRIOU UM ESTILO ÚNICO, PESSOAL E INTRANSFERÍVEL DE TOCAR GUITARRA

Meus amigos, tenho andado distraído. Impaciente e indeciso. Tenho andado, também, em companhia de Eric Clapton. Digo isso e já explico. Acabei de terminar o que eu havia começado: li inteirinha a biografia do assim chamado Deus da guitarra, uma verdadeira bíblia. Não uma bíblia do rock, mas a da história de um homem absolutamente perturbado e inquieto, que só conseguiu verdadeiramente um pouco de paz aos 56 anos – vejam vocês – depois da morte de sua mãe. Aí, sim, entendeu a figura feminina em sua vida e hoje é casado e tem três filhas. Lindo isso, não?

Já conhecia a história da vida de Clapton porque li uma outra biografia, de autoria de Michael Schumacher (não o piloto), só que esta tinha um prisma mais na carreira do artista. Esta, como era de se esperar, fala do homem, visto por ele próprio. Mostrei, ali em cima, um final feliz para uma história por vezes horrenda, que inclui quatro anos de vício em heroína e cocaína, nos quais nosso herói nada fez a não ser sofrer; alcoolismo, do qual ele luta diariamente para se manter distante; uma tragédia familiar sem precedentes, que causou a queda do filho, um menino de uns 4 anos, de um prédio de 52 andares em Nova York; e a rejeição materna que Clapton teve que carregar durante cerca de 56 anos. Enumerei esses pontos só para se ter uma idéia do tamanho da encrenca.

Por sorte, desde cedo Clapton se tornou um milionário, a custa de seu trabalho como guitarrista e como músico. Para quem não se deu conta, Eric Clapton criou um estilo único, pessoal e intransferível de tocar guitarra, e logo no início da carreira, ainda nos anos 60, ganhou muito dinheiro fazendo riffs com John Mayall, no Cream e no Blind Faith. Esse jeito específico de tocar é explicado sinteticamente no livro, com uma simplicidade digna dos gênios, muito embora talvez só quem seja “do ramo” consiga compreender o mecanismo que ele criou. Mas disse que Clapton se tornou um milionário, e assim pode colecionar Ferraris, comprar casas mundo afora, fazer cruzeiros pelos mares, bancar sexo, drogas – muita droga – e rock’n’roll, sempre trabalhando pacas. Era, no entanto, abastado e infeliz.

Vivendo o próprio inferno, Clapton fez mal a muita gente, mas sobretudo a ele mesmo. Já famoso, se recuperava em clínicas, fazendo trabalhos manuais ou trabalhando duro no campo. Imagine vocês, no interior da Inglaterra, o Deus da guitarra, já famoso, já rico, ajuntando feno, ordenhando vacas e colhendo frutas. Com o passar do tempo, percebeu que, de tanto fazer mal, precisava arriscar no bem. Criou uma fundação/clínica de recuperação para viciados como ele, ricos como ele, em Antígua, uma ilha no meio do caribe. Ajuntou a grana de uma forma bem simples: leiloando, num pomposo evento na Califórnia, 100 guitarras de sua coleção particular. Acredite que só uma delas, a mais usada pelo músico nos anos 70, rendeu a bagatela de 1 milhão de dólares.

Pois vejam que o passar do tempo está me transformando num homem de fases. Li a biografia de Slash, já comentada aqui, e desandei a escutar Guns N’Roses. Agora, com a história de Clapton escorrendo pelos olhos, volto aos ouvidos à extraordinária trajetória de um dos guitarristas/músicos mais importantes em todos os tempos. No que descobri que, apesar de eu ter a espetacular caixa “Crossroads”, que cobre todas as andanças de Clapton até 1988, pouco coleciono de sua discografia. E dá-lhe entrar em site em busca de pechinchas, e dá-lhe baixar tudo o que é disco do Lord da guitarra. Agora, por exemplo, ouço a gravação pirata do sensacional show da Praça da Apoteose, no Rio, que Clapton fez em 7 de outubro de 1990. Sempre coloquei esse show no rol dos meus preferidos, no meu top qualquer número. Disse “top qualquer número” porque, na minha idade, e com a minha rodagem, é simplesmente impossível anotar um top 5 ou 10. Pois este show fantástico – o que é a tecnologia – ecoa agora das caixinhas de som do meu computador.

Mesmo tendo pilhas de novos discos aqui para ouvir e publicar em algum canto, gosto da sensação do homem de fases. É bom poder revisitar carreiras e lembrar como músicas marcaram a vida da gente, e ainda conhecer outros períodos do mesmo artista, nos quais eventualmente sequer tivemos interesse em, à época, escutar. Afinal, definitivamente, não se pode ouvir tudo o tempo todo. Há momentos, no entanto, de se fazer isso, em geral porque somos – diria Neil Peart, na voz de Geddy Lee – vítimas das circunstâncias.

Dizia que Clapton criou um estilo único, pessoal e intransferível de tocar guitarra, mas não é “só” por isso que ele se tornou um grande artista. Intuitivamente – ou mesmo ao sabor do acaso – soube pinçar músicas de outros artistas e fazer grande sucesso com elas, tirando, em geral, tal artista do ostracismo, ou contribuindo para isso. Foi assim com J.J. Cale (“Cocaine” e “After Midnight”), Bob Marley (“I Shot The Sheriff”), Robert Jonhson (“Crossroads”, entre outros), “Can’t Find My Way Home” (Steve Winwood) e outros blueseiros dos quais ele sempre foi fã. Mais: como compositor, criou riffs que fazem parte de qualquer lista de melhores, mais consagrados ou o que quer que o valha. Pense em “White Room”, “Layla”, “Cocaine” e tantos outros espalhados por aí. É ou não é algo fenomenal? Hoje Clapton se dedica a fazer discos com seus mestres (B.B. King, Robert Johnson, J.J. Cale), vivos ou mortos, e faz anualmente o Crossroads Festival, onde só guitarristas se apresentam, sejam mestres ou discípulos.

Disse que Eric Clapton se aquietou depois dos 56 anos, e que ele resolveu ajudar aos outros, não para fazer de sua biografia algo doce e com final feliz. Porque a vida do guitarrista sempre foi dura, amarga e cheia de revezes. Dramática até. É isso que faz da história em si algo interessante de se ler, mesmo que o texto, escrito por um guitarrista, evidentemente não carregue qualquer desenvoltura estilosa. E, ainda, a revelação de que um artista extraordinário, logo cedo chamado de Deus em seu instrumento, que construiu uma carreira soberba, em conteúdo artístico e popularidade (coisa rara no mundo pop), não passa de, no fundo, no fundo, um reles e frágil ser humano.

Até a próxima, e long live rock’n’roll!!!

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