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HERMANO VIANNA FALA SOBRE O DOSOL NO OVERMUNDO

O antropólogo Hermano Vianna visitou Natal e foi conhecer as coisas da Dosol. Leia o que ele escreveu sobre o rolé.

No noite de sábado deixei a roda de capoeira do Sidarta Ribeiro (isso mesmo, um dos diretores do Instituto de Neurociências de Natal é capoeirista, além de contista etc.), atravessei (não estava sonhando!) o desfile das escolas de samba campeãs do carnaval potiguar, e fui encontrar o Buca Dantas – o criador do cinema-processo e amigo de outros carnavais – na porta do Do Sol Rock Bar. Cheguei atrasado (também o show começava s 17hs, o que é uma idéia genial, mas não para participantes de simpósios de fim de semana…): o Superoutro já tocava, e o Vanguart iria subir no palco logo em seguida. Foi um prazer reencontrar também o Anderson Foca e a Ana Morena, criadores do bar, do festival, da gravadora, da produtora de vídeo, mostrando que é possível sim fazer coisas bacanas em todo o Brasil. O bar, por exemplo, já tem dois anos de atividade, sempre com bandas independentes e público ávido por novidades.

Já tinha ouvido falar muito bem do Vanguart, principalmente aqui no Overmundo. Estava preparado para gostar do show, mas não para gostar tanto. Comentei com o Ronaldo Bressane – que estava cobrindo o Simpósio de Neurociências para a Trip e foi comigo ao show – logo nas primeiras músicas: “eles estão prontos!” Estão mesmo: não teve uma música que não gostei. Como disse o Thiago Camelo, em comentário aqui no site: mesmo os covers (em Natal eles tocaram até Sgt. Pepper’s, para aumentar a psicodelia do meu fim de semana nordestino…) não soam apelativos. Todo mundo toca bem. O Hélio Flandres, vocalista, tem uma voz e tanto. E as composições da banda têm qualidades melódicas evidentes, aliadas a um furor folk-roqueiro adolescente (os meninos têm 20 e poucos anos) absolutamente convincente.

Porém, mais bacana ainda era o público. Todo mundo sabia cantar todas as músicas. Os primeiros acordes eram identificados com urros de aprovação. Meninas pulavam do palco para a platéia. Aquela festa. Quem precisa de gravadoras, de rádio, de lançamentos de CDs, para ser feliz? Ainda bem que existe a internet. A garotada que nasceu na rede não deve ter idéia de como as coisas eram difíceis antes… Hoje é possível a existência desse Brasil indie, paralelo, sem depender do mainstream para “quase” nada. É óbvio que é diferente. Talvez não existam mais Legiões Urbanas daqui para frente. Grandes estádios. Discos de platina. Claro que aquilo tinha o seu charme. Mas era um charme para poucos. Agora existem muitas bandas em circulação constante Brasil afora. De ônibus… Palcos menores. Públicos menores, mas não menos ligados ou fiéis. Não dá para comparar as duas situações. Mas acho que agora é melhor para mais gente, mesmo gente contando os trocados do cachorro-quente-jantar.

Saímos do Do Sol para comer uma pizza na Calígula, ali mesmo na Ribeira (que não teve o mesmo sucesso do Recife antigo – mas também nunca vai ter o abandono de massa pelo qual o Recife antigo já passou). Hélio Flandres me falou de sua paixão pelos Birds, que vários componentes do Vanguart eram professores de inglês (Ronaldo Bressane comentou: “vários Renatos Russos!”), que estão de mudança para São Paulo. Como sempre, lamentei a mudança: assim as cenas locais não se fortificam, quem faz sucesso vai embora. Mas entendo as razões: ir de Cuiabá para Natal é bem mais penoso – ou mais prático – do que de São Paulo para Natal. Não sei até quando… Espero que não por muito tempo. Então aviso aos paulistanos: tratem bem dos garotos cuiabanos! Quem sabe eles não ficam mais famosos que o Cansei de Ser Sexy!

Minhas aventuras em Natal não acabaram com a pizza da Calígula. Na segunda-feira ainda conheci o terceiro país da viagem. Fui fazer uma palestra para a garotada e professores do Conexão Felipe Camarão, periferia da cidade. Ainda bem que não era uma palestra normal (não agüento mais palestras normais…) – tudo era parte de uma “roda de prosa”, que já começava com o microfone aberto para quem quisesse dar sua idéia. Estava invertida a estrutura convencional palco-platéia, onde há aquela falação inicial e pouco espaço para conversa depois (por isso também gostei das sessões de posters no Simpósio de Neurociências, quando havia efetiva troca de idéias, e os professores viravam também platéia dos estudantes). Tinha preparado uma fala, gravei até uns CDs para tocar músicas-exemplos da história do samba e do funk que eu ia contar, mas abandonei os planos e deixei a roda decidir os rumos dos acontecimentos. Bem melhor assim.

E bem melhor o que aconteceu depois. Fomos para frente da igrejinha local, onde brincou o Boi-de-Reis das crianças. É o boi herdeiro do grande mestre Manoel Marinheiro, agora comandado por sua mulher, dona Isa, que faz de tudo, da costura das fantasias ao ensaio da coreografia. Antes do boi entrar na roda ainda houve a apresentação de Chico Daniel, outro grande mestre local (Felipe Camarão tem fartura de mestres) e um dos maiores mestres do mamulengo que o Brasil já teve. Gostei de ouvir as narrativas picantes, cheias de duplo sentido. Essa é uma longa tradição nas artes populares brasileiras, que não começou com o funk carioca, e nenhuma classificação indicativa vai domesticar.

Depois da brincadeira ainda fui entrevistado pela equipe de TV do Ponto de Cultura da Conexão Felipe Camarão. Liliane, minha adolescente e adorável entrevistadora, começou nervosa, mas não titubeou em nenhuma pergunta. No final eu quis entrevistá-la. Ela me contou que quer fazer letras ou comunicação. (Que comece a escrever logo no Overmundo!) Tomara que ela consiga realizar todos os seus planos. Realmente as coisas mudaram. Antes, quem morava naquele bairro achava que a universidade era território terminantemente proibido.

Na volta para o hotel, Vera Santana – a fundadora do Conexão Felipe Camarão, que existe em grande parte pois ela quer que exista, e incansavelmente move mundos para garantir que continue existindo, contra todas as dificuldades – ainda fez questão que eu conhecesse a Limbo Quinquilharias, uma das mais simpáticas livrarias do Brasil, onde comprei alguns livros do selo Jovens Escribas, que lança autores locais. Como não ficar animado depois de um fim de semana desses? Só vi o lado bom das coisas? Estou sendo ingênuo? Tento ao máximo controlar meu otimismo. Mas deixo de lado a prudência e penso: são tantos bons sinais, tantos países interessantes aparecendo… Quando todos eles se juntarem vai ser bem bacana… É preciso batalhar para que se juntem. Como aprendi com Miguel Nicolelis, com Anderson Foca, com Vera Santana: dá muito trabalho (até para parar de reclamar de tudo e partir para a ação), é preciso uma persistência absoluta, mas o resultado poder ser muito compensador…

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