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ANÁLISE: BECO DA QUARENTENA: RESISTÊNCIA CULTURAL

Por Clotilde Tavares

Ontem eu participei de um evento que me deixou alegre, cheia de energia e esperançosa em relação à força da cultura do povo natalense: a lavagem do beco da Quarentena.

O beco é uma travessa de uns 25 metros que comunica a rua Frei Miguelinho com a rua Chile. Eu gosto de dizer que o beco quase comunica o Centro Cultural DoSol com a Casa da Ribeira, sendo essas duas iniciativas os baluartes principais de resistência e vida do bairro naquele trecho. A prova disso é que ambas comemoram neste ano dez anos de atividade.

Mas voltando ao Beco, a história de dele pode ser lida no blog de Sandro Fortunato.

É um lugar cheio de lixo, imundo, enlameado, esburacado e soturno, por onde muita gente passa de dia para encurtar caminho mas de noite a história é outra e não é qualquer um que tem coragem de se aventurar na travessia.

Ontem, na grande festa que colocou todos os espaços da Ribeira funcionando e lotados de gente, o beco voltou à vida, ressuscitado e renovado por uma celebração poderosa, invadido por grupos de percussão e por artistas de todos os naipes. Vi por lá as mulheres do Rosa de Pedra, vi Danúbio do Pau&Lata, vi grupos de afoxé e seus mestres. Esse cortejo saiu do Buraco da Catita, arrastado pela vibe poderosa dos tambores; babalorixás cantavam suas melodias rituais e as divindades vieram todas nesse final de tarde, nos arrastando pela rua das Virgens, atravessando a Tavares de Lira, entrando na frei Miguelinho até a esquina do Beco, onde nos aguardavam os performáticos bailarinos da Companhia GiraDança.

Naquela hora, os tambores pararam e o canto em língua africana subiu aos céus, numa celebração linda, que arrastou não somente os artistas mas o público que estava também misturado com o cortejo. Quando eu vi aquele beco onde já se passou tanta tragédia, onde já reinou a imundície, a desordem, a prostituição, que é usado como banheiro público e onde os seres humanos no último estágio da degradação vão se drogar, pois bem, quando eu vi aquele espaço iluminado, banhado com água de cheiro e perfumado com talco, com o cântico poderoso e ancestral se elevando e trazendo as energias da Paz, da Arte, da Alegria e da Cordialidade, eu senti que algo novo está acontecendo nessa cidade.

O Beco da Quarentena a partir de agora deve ser tomado como um símbolo da resistência cultural em nossa cidade. Graças a nós, artistas e produtores culturais, aquele espaço vive e deve continuar vivendo. Foi bonito ver os natalenses, pela música e pela força do canto, da celebração e da alegria, recuperando um espaço que deve e pode ser nosso, a despeito da incompetência oficial.

É curioso que muita gente diga nos jornais, blogs e entrevistas que “é caótica a situação da cultura em Natal” ou “a prefeitura (ou o estado, ou qualquer uma das fundações culturais) está acabando com a cultura” ou “a cultura na cidade está se acabando”.

Eu afirmo exatamente o contrário. A cultura está aí, pujante e viva. Os artistas – músicos, compositores, artistas plásticos, escritores, bailarinos, atores e outros – estão aí, produzindo, trabalhando, levando o nome do Rio Grande do Norte para outros lugares, atravessando fronteiras. Temos teatro, dança, música, literatura e artes visuais em estado de permanente criação e produção, e isso tudo sem falar na cultura popular, porque os brincantes de todos os naipes continuam na ativa. O que se viu no Beco da Quarentena ontem foi uma prova.

Todo o Circuito Cultural da Ribeira é feito sem um centavo do dinheiro público, por pessoas como eu e você. É feito com a garra dos artistas/produtores que estão à frente do Centro Cultural DoSol e da Casa da Ribeira, contando com o patrocínio da Conexão Cultural Vivo. Tudo iniciativa privada, essa iniciativa que levou ontem para a Ribeira cerca de 10.000 pessoas, que por lá circularam, distribuindo-se por seus vários espaços, porque tinha programa para todos os gostos, desde peça infantil na Casa da Ribeira até o jazz no Buraco da Catita, passando pelo rock and roll no centro cultural DoSol. Tinha brechó, venda de livros e CDs, projeção de filmes e vídeos, e gente, muita gente bonita, circulando na paz, sem uma briga, sem uma arruaça.

O que vai mal, minha gente, não é a cultura: é a gestão pública na área cultural. O que vai mal é a chamada política cultural, ou a ausência dela. O que vai mal é a atitude dos governantes e gestores em relação à cultura: não sabem o que é, parece que não querem saber e, pior ainda, parece que têm raiva de quem sabe porque não colocam nos cargos as pessoas que realmente são da área e sabem o que estão fazendo.

A Cultura, como a Ribeira, é nossa. Não é do estado, nem do município. É da Cidade, e a Cidade somos nós: você que me lê agora, e eu que escrevo. Pense nisso.

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