Construindo o rock
Investimento no dia-a-dia resulta numa cena que não tem saída senão crescer. Pode até demorar, mas um dia ela aparece, grande, diversificada e forte. Natal que o diga.
Meus amigos, o que é o fuso horário. Já andei tanto por aí, mas nunca pensei que fosse encontrar horários diferentes em vôos domésticos, aqui mesmo, dentro deste Brasil varonil. Pois eis que, para chegar até Natal, gastei duas horas. E, para voltar, levei quatro. Não é lindo isso? Agora entendo quando os apresentadores de TV anunciam atrações e dizem, depois da hora, a expressão “no horário de Brasília”. Sim, há mais de um fuso horário no Brasil, sobretudo no horário brasileiro de verão, e eu, aqui, atolado no rock, não tinha atinado pra isso.
Foi pelo rock, aliás, que cheguei a essa conclusão, indo e vindo de um lado a outro para cobrir o Festival Dosol, lá mesmo, na capital do Rio Grande do Norte. Já estive outras vezes na cidade, mas jamais em datas em que esse tipo de coisa acontecesse. Coincidência ou não, fazia cerca de quatro anos que eu não fazia o percurso, e outros quatro da primeira vez em que estive lá, para cobrir o então emergente Mada – Música Alimento da Alma. Arredondando, oito anos em que pude ver Natal mais de perto. Natal uma ova. O rock de Natal, ora bolas.
Pois eu digo que muita coisa mudou. O que vi lá dessa vez foi um festival criado a partir de uma cena própria, o rock evoluindo em torno de si mesmo, como numa fábula vivida a cada dia há mais de 50 anos. Explico. Na primeira vez em que estive em Natal, vi algo feito a partir do esforço de produtores locais, mas com uma excepcional carência de bons artistas. Me recordo que, em uma das noites, encontrei com Paulo André, o produtor do Abril Pro Rock (festival independente mais antigo do Brasil) que sempre circula em tudo o que é evento para ver como as coisas acontecem – não por acaso é um dos fundadores da Abrafin (Associação Brasileiras de Festivais Independentes). Comentava com ele como eram ruins as bandas de Natal, no que obtive a resposta: – No começo é assim mesmo, tem que tirar leite de pedra.
Captei a mensagem já naquela noite, mas agora compreendo muito melhor. Vejam que só este ano, no Dosol, se apresentaram um total de 31 artistas, sendo 15 da própria cidade, ou seja, Natal compareceu com metade das bandas escaladas. E o leitor, afoito, conclui: – Que azar! No que eu retruco: – Na-na-ni-na-não! Isso porque os tempos de se tirar leite de pedra ficaram para trás e hoje Natal pode se orgulhar de ter uma cena rock tão forte quanto outras cidades mais próximas do sul maravilha, a ponto de se sustentar por si própria. Não é o caso, aqui, de sair separando subgêneros e derivativos, mas podemos citar, de leve, o punk do Dr. Carnage; o hardcore bacana do I.T.E.P.; o rock psicodélico do Bugs, já conhecido de outros carnavais, mas sempre em movimento; a mistura de grunge com metal (pra ser bem sucinto) do barulhento Rejects; o bubblegum do Fliperama; o inventivo Distro; e (ufa!) o descendente da origem do emo Calistoga. Mas atenção: isso aqui não é uma resenha. A cobertura foi feita pelo Homem Baile e está aqui (primeiro dia) e aqui (segundo dia).
Falando assim até parece que é fácil. Se perguntarmos para Anderson Foca, Ana Morena e o batalhão de figuraças que faz isso tudo acontecer, não só em dois dias, mas o ano todo, eles seguramente vão dizer que tiram leite de pedra, sim senhor, e todos os dias. Dão um duro danado, mas, no fim, ficam felizes e têm orgulho do que fazem. Por isso podemos concluir que o Centro Cultural Dosol, um dos palcos onde funciona o festival, é uma espécie de versão reduzida do próprio evento, que leva bandas para Natal todo final de semana e – claro – revela novos grupos. Aí aparece gente boa, gente ruim, gente que cresce, gente que desiste, e assim se forma aquilo que – na falta de um nome melhor – chamamos de “cena”. O Centro Cultural DoSol seria o Garage, se fosse no Rio. Ou o Hangar 110, se fosse em São Paulo.
Falei de 2001 e pulei pra 2009, mas vou voltar para explicar que, uma coisa é o Mada, e, outra, é o Dosol. O Mada bem que começou, naquela época, a tentar fazer um agito na cena local, mas aos poucos a idéia foi se esvaziando, e, embora eu não vá ao festival desde 2004, posso dizer que ele se distanciou dessas origens – até pelo formato “grandioso” – e hoje está mais próximo daqueles eventos de pop rock que reúnem bandas grandes, bombadas na mídia, quase sempre os mesmos nomes a cada ano. E o DoSol, que começou querendo ser maior do que era, parece ter encontrado um formato que lhe calça bem os pés. Em vez de ocupar o Largo da Ribeira inteirinho, onde o Mada teve sua gênese, melhor usar a frente do Centro Cultural e do Armazém Hall, que ajunta o público e ainda lhe fornece área de circulação e ar puro, em meio a tanto rock. Digo tanto rock porque, com dois palcos, o rock não pára. É de três e meia da tarde, no real time personal horário de inverno, com o sol rachando na moleira, que tudo começa, e depois invade a noite e até a madrugada, no caso do sabadão.
Sim, meus amigos, o tempo é o senhor da razão, com fuso ou sem fuso. E a lição que fica é que, se queres fazer um festival, queres ter bandas pra exportar, é preciso fazer acontecer não de forma bissexta, mas dia após dia, todos os dias. De repente, quando se menos espera, tá tudo ali. Porque, não me canso de dizer, o rock está aí, de bobeira, se oferecendo a meio mundo. É só pegar, trabalhar pra dedéu que ele germina, cresce, se prolifera e dá frutos, muito frutos. De Londres a Nova York, do Oiapoque ao Chuí, do Rio a Natal. Confuso ou sem fuso.
Até a próxima, e long live rock’n’roll!!!
Lindo!
Sabe tudo e mais um pouco esse Braggato!
Concordo com a maior parte do que foi dito. Bragatto é o cara!