Uma frase lançada para Anna, a protagonista de Senhores do Crime interpretada por Naomi Watts, pode funcionar como gancho para compreender o tipo de relação sobre as quais o filme versa. À certa altura a mãe dela crava: “nós somos pessoas normais”. Por normal entenda-se uma família que se sustenta em laços combalidos, alimentando uma esperança vaga de quietude.
Mas é a anormalidade de costumes, de códigos sociais e de conduta que interessa ao diretor David Cronenberg, em mais um filme merecedor de muitos aplausos, como foi Marcas da Violência. A dimensão do que é normal e anormal vai ficando clara quando Nikolai, interpretado pelo excelente Viggo Mortensen, Kirill, vivido por Vincente Cassel e Semyon, na pele de Armin Mueller, desdobram para o espectador as suas motivações, o que de fato rege as suas vidas, que mesmo quando aparentemente se igualam aos normais, estão apenas exercitando a capacidade de proporcionalmente inversa maneira esconder o conjunto de regras a que estão submetidos por escolha ou herança, enfim o que forma suas identidades.
São relações intrínsecas e ritualísticas que em muito lembram costumes tribais. Coisas que obviamente conflitam com a noção de humanidade a que estamos acostumados. O sentimento de humanidade que liga, por exemplo, Anna a Nikolai e antes disso a Christinne, órfã de Tatiana, interpretada por Sarah-Jane Labrosse, a jovem russa que deixa seu país em busca de uma vida melhor em Londres e finda caindo nesse círculo alheio, anormal para todos os nossos padrões, movido por Nikolai, Semyon e Kirill.
Inclusive nos limites largos de tolerância com a violência. Eis a marca de Cronenberg: a impiedade mostrada crua, nua, como jamais esperamos encontrar num ambiente tão familiar, normal, por assim dizer, como uma sauna onde eles, os senhores do crime, têm por costume resolver seus negócios.
Eastern Promises, 2008, David Cronenberg