Coberturas, Festivais e Shows

COMO FOI? QUARTA NOITE DO RECBEAT (PE)

Por Hugo Montarroyos

http://www.reciferock.com.br/2009/02/25/cobertura-rec-beat-2009-quarto-dia/

O Cordel do Fogo Encantado versão 2009 tem metais, violões flamencos e toques de jazz. Sua sonoridade está ficando cada vez mais sofisticada. A boa notícia é que, mesmo amplificando o raio de alcance de sua música, seu sotaque permanece legitimamente sertanejo, rústico. Aquele Cordel de dez anos atrás transformou-se em uma banda absurdamente criativa, única. E que emociona pacas. Muito. E, ao mesmo tempo, é também a expressão mais roqueira que possuímos hoje no Brasil. Porque o que aqueles tambores somados ao violão de Clayton Barros conseguem produzir é mais denso e ensurdecedor do que boa parte da cena roqueira nacional. E Lirinha é um ser tão “perturbador” que consegue impregnar com sua alma cada uma das trocentas mil pessoas que o seguem como um Antônio Conselheiro da música. A ponto de fotógrafos interromperem o trabalho porque não conseguiam segurar as lágrimas. Na boa, depois de um show do Cordel do Fogo Encantado, principalmente no Recife, faz com que você saia dali querendo se tornar um ser humano melhor.

Desabafo feito, vamos tocar o barco em frente. A última noite da décima-quarta edição do Rec-Beat transcorreu, em sua maior parte, em clima de altíssimo nível musical. Foi assim com o excepcional Burro Morto e com Junio Barreto. Sem falar, evidentemente, no Cordel do Fogo Encantado. O clima só esfriou com a equivocada presença do tango da cantora uruguaia Giovanna, e no confuso show da colombiana Bomba Estéreo, que deu sorte de tocar para um Paço Alfândega lotado e ansioso pela entrada do Cordel do Fogo Encantado.

A noite foi aberta pelos paraibanos do Burro Morto, banda que alia psicodelismo, jazz, samba (ainda que bem discreto), teclados que remetem ao que de melhor já foi feito pelo Pink Floyd. O resultado disso tudo soa originalíssimo, intenso, hipnótico. Ainda que seja uma banda que prima pelo virtuosismo, o que prevalece é o conjunto, jamais o individual. E, mais espantoso ainda, jamais cai na chatice, no hermetismo barato, na afetação gratuita. Eis uma banda que ainda vai muito longe.

Logo em seguida entrou Junio Barreto, um dos compositores mais talentosos de sua geração. Sem medo de subverter Chico Buarque em “Quando o Carnaval Chegar”, transformando a música em algo ainda mais melancólico (no que a palavra carrega de bonito) do que a sua versão original. Isso sem contar com o arranjo arrebatador para a linda “A Mesma Rosa Amarela”, de Capiba. Das de próprio punho, “Santana” e “Amigos Bons” foram as que mais emocionaram. Como sempre no caso de Barreto, um show marcado por um profissionalismo e competência extremos.

Quem destoou um bocado da noite foi a uruguaia Giovanna. Seu tango acabou dispersando uma parte considerável do público. Para piorar, a chuva caiu em boa parte da sua apresentação.

O confuso e esforçado Bomba Estéreo, da Colômbia, se aproveitou do fato de tocar para casa cheia. Nos piores momentos, parecia uma versão um tanto mais cabeçóide dos shows de Shakira. Nos melhores, lembrava o Bomba Estéreo mesmo, o que não quer dizer lá grande coisa. Com o perdão do preconceito, dava muito mais a impressão de coisa paraguaia – no que o termo tem de pior – do que de qualquer outra parte do continente.

Cordel do Fogo Encantado no Recife é Beatles. Ponto. A capacidade de entrega da banda no palco é algo que transcende os limites do humano. Ou, talvez, seu maior mérito seja o de justamente de não temer ser despudoradamente humano. Não dá para destacar um momento. Cada segundo de show é relevante, e acho que não conheço banda alguma no mundo capaz de tal proeza. Seja na covardia de “Preta” – que parece feita propositadamente para chorar -, ou em “Evocação Para Um Dia Líquido”, ou “Morte e Vida Stanley”, tudo que é feito ali é permeado por uma palavra: verdade. Eles são exatamente como se apresentam para o público. Nada é forçado. E o repertório cultural de Lirinha é monstruoso. O homem parece que mergulhou na História do Brasil e a transformou em uma obra cujo biógrafo nenhum será capaz de traduzir. Bingo! É dessa nossa incapacidade de traduzir o Cordel do Fogo Encantado que reside toda a força da banda.

É chover no molhado dizer que a participação de Cannibal, vestindo camiseta dos Pixies, foi a personificação perfeita do Brasil dos tempos de Canudos até hoje, como Lirinha explica tão bem a cada vez que toca “A Matadeira”. O Alto José do Pinho, nas palavras do vocalista do Cordel, é o Canudos do presente. Assim como todas as favelas brasileiras o são.

As novas composições, como “Marco Pólo”, mostram um Cordel que evoluiu assustadoramente desde os tempos das pedrinhas miudinhas. Sua obra reflete a doce agonia de quem tem uma fome e sede de conhecimento que só podem ser saciadas através da criação. Seja em forma de teatro, literatura e música. O Cordel do Fogo Encantado, surpreendentemente, juntou as três artes à perfeição e concebeu a sua própria. Não é à toa que emociona tanto. Não é em vão que é tão bonito.

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