A grande matança.
Cinco da tarde sempre me pareceu um tanto cedo demais para começar um show. é um horário de transição: não é mais dia, nem é de noite ainda. Com esse pensamento na cabeça, cheguei ao DoSol Rock Bar por volta desse horário e qual foi minha surpresa ao dar de cara com várias figuras que já esperavam a bilheteria abrir para comprar o ingresso. Surreal: em pleno dia de Tiradentes, chuva forte a caminho, camisetas do Slipknot, System of a Down e Bikini Kill faziam fila para ver quatro bandas locais mais a carioca Matanza, grande atração da noite, famosa por seu crossover de country/hardcore e por seu vocalista ruivo, o “gigante irlandês” Jimi (ou McDowell, pra quem costuma assistir o Rock&Gol da MTV).
Sabendo que ainda faltava muito pra banda principal subir ao palco, pouca gente se deu ao trabalho de entrar no bar para ver o Fliperama, a primeira a tocar. Sacanagem. Apesar de pouco tempo de estrada e poucos shows no currículo, é perceptível o entrosamento da banda que faz um punk rock bubblegum inteligente no melhor estilo Carbona e The Queers. Tocaram pouco, mas tocaram bem com direito um cover de “Menudo Capixaba” d’Os Pedrero.
A segunda banda já se preparava para se apresentar, mas o público não dava a menor impressão de que ia entrar. Por volta das 6 e pouca coisa da tarde, o Calibre começou a tocar para menos da metade da casa. De cara, foram prejudicados pela péssima qualidade do som, que provocava grandes intervalos entre uma música e outra. Com tantas pausas e interrupções no fluxo do show, o Calibre começou a aborrecer. O hardcore criativo do quarteto se perdia em meio má equalização do som das guitarras e do microfone. Com um som correto, a banda provavelmente não soaria tão cansativa, mas quela altura eu já estava louco por um cigarro. Tentei barganhar uma saída rápida com o segurança para ir comprar na rua, mas fui “gentilmente” empurrado de volta antes de terminar a frase. E nem isqueiro eu tinha.
Foi preciso começar a chover para fazer quem estava do lado de fora entrar para ver o Peixe Coco. Contando com uma ajudinha de São Pedro, foram os primeiros a tocar para a casa cheia. Souberam aproveitar e fizeram o povo pular sério. Tocaram uma verdadeira bateria de covers: “I shot the sheriff”, de Bob Marley (manjada e desnecessária), “I believe in miracles”, dos Ramones (por insistência do público, que aproveitou para dar uns tímidos moshs) e “Go with the Flow” do Queens Of The Stone Age (numa versão um tanto hardcore demais para o original). Fecharam com “Típico Local”, da finada General Junkie.
Antes da próxima banda subir para tocar, aproveitei para dar uma panorâmica no local. Tipos dos mais diferentes naipes decoravam a paisagem do DoSol Rock Bar : desde a gordinha hardcore, passando pelo indie descabelado e de olhar perdido e pelo roqueiro mauriçola de FM, indo desaguar no metaleiro beberrão de coturnos e jaqueta de motoboy. Comecei a esperar pelo pior, imaginando como essa salada de corpos ia se comportar quando o Matanza finalmente subisse ao palco.
Mas antes do prato principal, havia ainda o 084 (ou Zero8Quatro, segundo a camiseta de uma menina). Postura rocker, de braços abertos e sem camisa, o som da banda me lembrou de cara o Jane Fonda, o que causa dois sentimentos contraditórios: se por um lado é bom ver as bandas da cena local influenciando outras, por outro é péssimo ter a mesma banda duas vezes dentro de uma cidade tão pequena. Tocam bem, mas ainda têm muito que aprender sobre como se comportar num palco. Metade da banda se esgoela, enquanto a outra parece estar envergonhada por estar em cima do palco (ou seria por conta da empolgação dos colegas?). Ao anunciar que participariam do MADA, o vocalista aproveitou para recitar um trecho de uma música do Pavilhão 9, com quem dividirão a noite no festival (“Não falo nem d’ O Rappa, por que já tá malhado”, disse o rapaz). Certo. Quem sabia a letra cantou junto, quem estava disposto pulou, quem estava cansado pelo show do Peixe Coco, sentou e esperou.
Por volta das 21:00, o ambiente começou a ficar esquisito. A pessoas pareciam se movimentar mais rápido, os olhares pareciam mais duros. No palco, o baterista do Matanza (estranhamente vestindo uma camiseta do emo.), passava o som do seu instrumento com um cigarro no canto da boca. O momento se assemelhava ao que antecede uma batalha. O baterista tirou a camisa e acendeu outro cigarro. Foi o sinal para os outros membros da banda subirem ao palco, ovacionados tal qual lutadores do Telecatch. Mas ainda faltava a grande estrela da banda. A platéia pedia: “Jimi! Jimi! Jimi!”.
Surge então aquele que talvez seja o frontman mais poderoso do Brasil atualmente. Lá em cima, Jimi assume outra persona. Em cima do palco, seu tamanho parece duplicar, tornando-o ainda maior. De cara fechada, com o punho erguido frente, o sujeito estava muito mais para bárbaro visigodo esmagador de crânios do que para gigante irlandês. A banda engata os primeiros acordes e o pandemônio se instala no DoSol. Começava a grande matança.
O caldo de suor, cerveja e cigarros fervia cada vez mais quente a cada música. Enquanto o guitarrista solava, Jimi ou ficava de costas para o público, ou simplesmente observava a pancadaria de braços cruzados. Quando se comunicava com a platéia o fazia da forma mais rocker possível. Dono absoluto da cena inteira, provocava: “Vocês querem o maldito hardcore”? Ninguém ousou dizer que não. E tome “Pé na porta, soco na cara”, “Ela roubou meu caminhão”, “Bom é quando faz mal”, “As melhores putas do Alabama” e outros clássicos petardos dos cariocas. O público natalense ainda recebeu de presente uma inédita (“O chamado do bar”) que, segundo Jimi, “ninguém nunca ouviu”. Assistir a um show do Matanza com uma câmera na mão, tentando fotografar o palco da platéia te faz pensar que o inferno não é um lugar tão mal para estar. Pode até ser, mas duvido que o Capeta tenha tanto carisma e Bourbon nas veias quanto o Matanza. Pra ficar na retina e nos hematomas de quem estava lá.
A chuva resolveu aparecer bem na hora da saída. Debaixo d’água, acendi afinal, o tão desejado cigarro. Estava precisando. Não é a todo dia que se sobrevive a uma briga de bar tamanho família. E que a chuva leve o sangue esgoto abaixo…