O Pelourinho, como todo bom clichê turístico, não é freqüentado pelo baiano típico. Ali é reduto para turistas e, salvo algumas raras exceções, sequer existe motivo para ir até lá durante um fim de semana. Apenas isso já seria um enorme tiro no pé para quem decidisse escolher o cenário para um festival de rock. Começando às 15h, então, é suicídio. Só que encontrar o palco do Boom Bahia já cheio de gente, em plena tarde de sábado, era apenas uma das surpresas reservadas para o fim de semana.
Bolado pelo Aparelho Cultural, que tem à frente uma das figuras mais importantes do indie nacional, Messias Bandeira, o festival acontece com o mínimo de apoios possível. O orçamento, se comparado até a outros independentes, deve chegar no máximo ao do cachê de uma das atrações internacionais de um Abril Pro Rock. Então é um cenário de constante superação, que envolve as bandas e figuras da cena local no fortalecimento da idéia de que a Bahia é uma das terras prometidas do rock.
Na verdade, o Boom Bahia não começou no sábado. O primeiro dia foi no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (Icba), com debates e dois showcases de abertura. Estive na primeira mesa, sobre jornalismo e música, junto com Luciano Matos , Chicão, Braminha (representante da MTV em Salvador) e Mário Sartorello (rádio educadora), mediado pelo professor do Doutorado da UFBA Jeder Janotti Jr. O papo começou tímido, mas terminou mais acalorado quando chegou no deve-não-deve criticar a cena independente.
Todos os eventos foram de graça. Nessa primeira noite circularam cerca de 200 pessoas pelo local, naquele clima de “its all happening” com direito a troca de CDs, contatos, cartões, etc. Um encontro da Abrafin Nordeste deu seqüência na noite que contou com Anderson Foca, Paulo André, Ivan Ferraro, Rogério Bigbross, mediação do próprio Messias e participação ainda de Gilberto Monte, da Fundação de Cultura da Bahia.
Da maratona de shows, fica evidente o fato de que a qualidade das bandas baianas são muito, mas muito acima da média do que acontece no Nordeste. Em nenhuma das outras capitais – nunca estive em Fortaleza, então talvez eu possa me enganar em relação ao que acontece lá – seria possível montar uma grade com tantas atrações locais, todas com bons shows.
Existe uma relação de auto-estima local na Bahia que é muito importante. O público vibra por atrações da casa, marcm presença e canta junto. E isso era visto até na mais nova do sábado, Vivendo do Ócio, que fez uma das melhores apresentações de todo festival. Novo rock, cantando em português, com personalidade própria. Tudo sem muita pretensão, com um vocalista que toca guitarra igualzinho ao Alex Turner.
A pegada folk dos Culpados manteve o bom nível do dia. Nessa, minha teoria sobre a média das bandas ganhou reforço. O rock da Bahia não é concentrado em nada e encontra interlocução (boa) em todos os seguimentos. Seria muito mais fácil encontrar um punhado de clones de Pitty e Novos Rauls, pegando carona no que se espera ouvir ao associar o gênero à cidade. É legal ver como essas diferenças convivem bem… Não consigo pensar numa banda folk sobrevivendo numa cidade como Recife.
De fato, não consigo lembrar de banda folk nenhuma no Nordeste inteiro. Ainda mais uma que consiga segurar a onda antes de um show de hardcore. A Lumpen, que subiu ao palco logo depois, entrou no top 5 de melhores apresentações do Boom Bahia (que, por sinal, foi rigorosamente pontual). A banda, que tem um cara que é praticamente um clone dos integrantes do Bad Brains nos vocais, trouxe as primeiras rodas de pogo do festival.
Acho que é sempre importante para uma banda que canta música de protesto não se levar tanto a sério assim. A Lumpen consegue perceber que, antes de tudo, tem gente ali para se divertir e não para ouvir sermão, coisa que estraga 10 em cada 10 bandas de hardcore, principalmente no Nordeste. Eles, pelo contrário, promoveram a celebração antes de tudo, brincaram no palco e garantiram o clima do festival.
Nesse show, eu vi uma figura ensandecida no público. Figura baixa, camisa vermelha, com um sorriso que devia ser maior que a própria cara. Ele não parava de gritar “TOCA RAUL!” para as bandas. Era o próprio Lázaro Toca Raul, figura do rock baiano que talvez só não seja mais comentada quanto o próprio ídolo por quem ele sempre esperneia.
Quando os Irmãos da Bailarina começaram a tocar, a noite também já ensaiava sua entrada no cenário. Foi um show muito mais baixo, que mesmo em uma noite tão eclética, acabou servindo um pouco como balde de água fria no público. Mesmo com músicas mais densas do que as que estão no MySpace, teve poesia em excesso para o ritmo de um festival. Muita gente decidiu circular na hora. O que eu vi, curti. Apesar de achar que, diferente do Lumpen, eles se levam um pouco mais a sério que o permitido no palco.
Aliás, esse é o único ponto negativo da Lou. A nova vocalista, Danny Nascimento, deu uma melhora de 300% na banda. Já conhecia o trabalho dela solo, que teve pouca força depois que ela participou do ídolos (sim, aquele programa da Globo). Apesar da vibe um tanto Pitty na banda, elas conseguem passar um toque próprio nesse tipo de rock que hoje tem mais cara de baiano. A presença dela de palco ajuda um monte. Danny cresce mais que a própria banda quando canta com a voz de quem engoliu um afinador.
Junto com os Irmãos da Bailarina, a próxima banda que se apresentou fez parte do time low-profile do festival. Theatro de Séraphin representa uma geração anterior do independente soteropolitano. Formado inclusive por um ex-brincando de deus. É quase inevitável, portanto, a grande quantidade de referências ao rock dos anos 80. As músicas mais lentas acabaram dando uma sensação de que o show durou mais que os reais 30 minutos.
Uma coisa que o Boom Bahia faz e que não seria de tão mal ser implementado por outros festivais é o rigor do horário. A Sweet Fanny Adams anunciou o penúltimo show e o relógio ainda batia as 21h. Tudo organizado para terminar cedo. Claro, precisa levar em consideração que a cidade ainda tinha muito mais festa e shows próprios para oferecer para quem quisesse ver o sol nascer na rua.
A única atração de fora do primeiro dia, os Sweet fizeram um show – por falta de termo melhor, vou usar um que odeio – bem redondinho. Lembro quando vi os primeiros shows da banda, quando eles levavam meia hora tentando entender o que estava acontecendo no palco entre uma música e outra. Acho que uma vez cheguei a ir ao banheiro e voltar nesse intervalo. Agora, eles estão no pique de fazer um bom show precisando apenas plugar os instrumentos.
Mandaram uma versão de Wolf Like Me, do TV On The Radio, além de músicas dos dois EPs. Já tinha gente lá na frente do palco que sabia cantar boa parte do repertório, o que foi legal de ver. Dentro do contexto do independente, acho que já dá para colocar eles no patamar das bandas médias. Próximo ano, se mantiverem o pique, devem subir no horário da programação dos festivais. Mas, confesso, nem estão no meu top 5 do Boom Bahia.
O trabalho de encontrar palavras para descrever um show do Retrofoguetes tocando em casa parece ser tão ingrato quanto desnecessário. O do encerramento do festival teve uma novidade para mim. Subiram os três de macacão vermelho, com uma nova logomarca da banda. Algo que eles parecem fazer sempre em Salvador, mas que nunca tinha visto nos oito shows que já vi deles em outras cidades. E visual bem cuidado sempre foi uma das raras coisas que sempre achei que faltava no Retro.
Morotó, que agora tem na prateleira o prémio Dodô e Osmar de melhor guitarrista do Carnaval da Bahia – disputado com figuras do Axé e tudo mais – quebrou as cordas já na primeira música, de tanta vontade de destruir no show.
O Retrofoguetes consegue fazer você cantar no show. E isso apenas já é suficiente para explicar porque eles são uma das melhores bandas instrumentais do mundo. De surf music, a melhor com certeza. Sem medo de mandar um hit como Dick Dale and his Del-Tones (aquela do Pulp Fiction, sabe?) eles te deixam duas opções apenas: dançar e pular feito louco, ou cantar os trechos da música, imitando os instrumentos, ou até inventando uma letra, igual um louco fez, encostado na parede mais próxima do palco, totalmente em transe.
Tudo isso terminou antes das 22h. Uma boa parte de quem estava ali nos bastidores acabou indo para a festa Baile Esquema Novo, na Boomerangue. Uma parte para o Balcão, outra para o Postudo. De todas as cidades que já visitei, Salvador foi a única que tinha mais de duas opções do que fazer para continuar a noite após um festival. Acho que se o Boom Bahia conseguisse se conectar com essa vida noturna rica, cresceria ainda mais.
Logo mais tem o texto sobre o segundo dia. Na sequência, videozinho dos shows. As fotos são de Mariana Neri.